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quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Análise de outra reportagem do Ministro Cezar Peluso


   Creio que muito em breve o nobre ministro figurará nas referências "pessoas que admiro". Dono de uma mente brilhante e moderna, caráter imaculado e sábias posturas, Peluso tece comentários sobre a litigiosidade  e o panorama jurídico brasileiro que valem a pena conferir. Leia a reportagem abaixo (entrevista concedida em 09/08 a Alessandro Cristo durante Semana Cultural em Cores - SP):

   ConJur — O que falta para que métodos alternativos de resolver conflitos sejam uma fase integrante do processo de solução de controvérsias?


Cezar Peluso — Esse é um anseio comum nosso, que é o de transformar o uso de todos os mecanismos chamados de meios alternativos de resolução de conflitos em instrumentos de atuação do próprio Judiciário. O objetivo não é apenas incentivar que isso seja usado pela sociedade fora do Judiciário.

   ConJur — O que precisa ser mudado?


Cezar Peluso  Queremos incorporar ao Judiciário, como instrumental, como mecanismo próprio, o uso desses meios como uma maneira de se responder alternativamente à solução por imposição de decisões e sentenças, e não apenas um meio alternativo a ser usado por outros organismos. O acesso ao Judiciário não pode ser apenas por meio de processos litigiosos como tal, mas também mediante alternativas que o Judiciário vai pôr à disposição da sociedade para resolver os conflitos de outros modos além dos meios tradicionais de adjudicação e produção de sentenças.

   ConJur  No que isso é bom para o jurisdicionado?


Cezar Peluso  O usuário passará a ter a possibilidade de resolver seu conflito sem ter que aguardar a tramitação e o custo, não só material, mas também psicológico dos processos judiciais.

   ConJur  Também é interessante para a Justiça, já que o número de demandas tende a diminuir?


Cezar Peluso  O intuito não é apenas reduzir a carga do Judiciário, não é esse o sentido. A ideia é dar à própria sociedade uma via de se tornar mais pacífica e diminuir, com isso a litigiosidade, de modo que o alívio ao Judiciário vai aparecer apenas como um subproduto de uma coisa muito mais importante, que é a pacificação social. Isso muda tudo. Tentar resolver os conflitos de modo pacífico, com soluções que nasçam do diálogo dos próprios sujeitos do conflito é, do ponto de vista prático, extremamente frutífero.

   ConJur — Existe resistência à mudança?


Cezar Peluso — Não, o que há é falta da cultura. Temos que mudar a mentalidade. Os juízes, por falta de compreensão e preparação, têm a ideia, em geral, de que é mais importante para eles conduzir uma demanda com todas as vicissitudes e a demora que um processo implica. Isso acontece em todo o mundo. Não é só no Brasil que o processo é demorado. O fenômeno é universal. É preciso mostrar aos juízes que é mais importante para a sociedade que eles desenvolvam mais profundamente esses processos alternativos do que se ficar alimentando processos e a produção de sentenças. Isso significa mudar um pouco a concepção dos juízes a respeito do exercício das suas próprias funções, no sentido de que também passa a ser função dele tentar pacificar o conflito mediante o uso desses mecanismos que não são a via tradicional.

   ConJur — O que está sendo feito em termos práticos nesse sentido?


Cezar Peluso — Estamos recolhendo subsídios para formular, a partir de uma proposta formal como a do professor Kazuo [Watanabe], um projeto que leve o Judiciário a adotar atitudes que signifiquem modos de tentar mudar toda essa estrutura e, inclusive, a mentalidade. Temos de mostrar para o Judiciário que isso também é meritório, e importante no plano social. Sabemos que não vamos colher os frutos em um ou dois anos, mas estamos plantando para colher a longo prazo, o que vai ser muito proveitoso.

   ConJur — Como produzir essa nova mentalidade?


Cezar Peluso — Isso envolve uma série de mudanças que podem ser tomadas a partir de uma provocação aos próprios órgãos jurisdicionais. O professor Kazuo ofereceu algo muito interessante. O índice de pacificação dos processos nunca é levado em conta na apuração do merecimento dos juízes como critério de promoção na carreira. A regra geral é a estatística de quantas decisões e sentenças foram proferidas. Nunca se indagou dos juízes quantos processos terminaram sem sentenças. Hoje, a própria metodologia adotada no processo de apuração de merecimento é um incentivo à perpetuação dos processos. O que se ouve é: "aquele juiz, nesse mês, proferiu 200 sentenças". Sempre fui contra isso.

   ConJur — O senhor é contra o levantamento estatístico da produção dos magistrados?


Cezar Peluso — Fui por oito anos juiz de família e sucessões, e nunca tive preocupação nenhuma em mostrar estatísticas. Era capaz de permitir que as partes viessem conversar comigo — o que aconteceu muitíssimas vezes — durante mais de ano na tentativa não de dar uma sentença rapidamente, o que seria muito fácil. Tentava pacificar sobretudo na área de família, que envolve não só o marido e a mulher, ou o ex-marido e a ex-mulher, que estão ali, mas toda a constelação familiar e as pessoas adjacentes. Essa experiência de oito anos em varas de família me mostrou que o empenho pessoal do juiz em pacificar os litigantes é a melhor coisa que o Judiciário pode produzir.

   ConJur — O advogado também precisa ser menos litigioso?


Cezar Peluso — Há uma cultura de cultivo da litigiosidade. Há uma atração de estudantes para se dirigirem às faculdades de Direito porque elas acenam para a possibilidade de um exercício profissional vantajoso do ponto de vista econômico, por viver da litigiosidade. À medida que a litigiosidadeatração, do ponto de vista econômico, vai cair proporcionalmente, porque os estudantes vão pensar: de que adianta ser advogado se as pessoas já não estão litigando mais, e não estão dependendo tanto do exercício da advocacia? Nós então vamos poder aproveitar todo esse potencial em áreas hoje que o Brasil, na etapa de desenvolvimento em que está, precisa muito.

   ConJur — Precisamos ter menos advogados?


Cezar Peluso — Enquanto hoje a China forma, aproximadamente, de 500 a 600 mil engenheiros por ano, e a Índia 300 mil, o Brasil forma 30 mil. Se não resolvermos esse gargalo da capacidade brasileira de estimular e manter seu crescimento de modo sustentável, vamos ter problemas um pouco mais adiante. A manutenção do ritmo de crescimento que temos hoje vai depender, sobretudo, da maneira como o Brasil vai responder a esse desafio da existência de técnicos. Eu fiquei muito feliz ao ouvir do professor Jacques Marcovitch, que foi reitor da USP e é um cientista, que o Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social tem na pauta da sua próxima reunião exatamente esse problema, de saber como o Brasil pode duplicar a formação de técnicos necessários para sustentar o ritmo do seu desenvolvimento econômico. Portanto, vejam como as coisas estão ligadas do ponto de vista social.

   ConJur — O ordenamento jurídico estimula o litígio?


Cezar Peluso — O ordenamento brasileiro é como o de qualquer outro lugar do mundo, não precisa ser mudado. O problema é de cultura, de como se usa esse ordenamento, e de mentalidade sobretudo do Judiciário. A mudança depende também de uma provocação dos colaboradores do Judiciário. Temos que sensibilizar acadêmica e profissionalmente as faculdades de Direito para que incluam na grade curricular a preocupação com esses meios alternativos. Hoje, esse tema não faz parte de nenhuma grade. Não conheço ninguém que tenha se preocupado em dar aulas sobre essa matéria.

   ConJur — A produção de sentenças não é uma praxe do próprio juiz, difícil de ser mudada?


Cezar Peluso — A produção de sentença é resposta do Judiciário à postura dos litigantes. São os litigantes que querem sentença. E é o juiz quem pode ter atuação decisiva e mudar a visão dos litigantes. Se nós sentarmos, como os juízes muitas vezes fazem com os litigantes, e conversarmos, tentando mudar essa expectativa em relação à sentença, tentando mostrar que ela não resolve nada e pode até criar outros problemas, então poderemos, de modo sistemático, mudar um pouco essa realidade.

   Não há muito o que comentar sobre a reportagem. Sinceramente ele é perfeitamente literal em sua análise e simplesmente ocupa o mais alto cargo em nosso judiciário. Logo, não há ninguém mais habilitado para falar sobre os problemas de nosso sistema. Concordo com Calamandrei quando este compara a litigiosidade com uma infecção. Temos que buscar o "remédio" para curar nossa sociedade ocidental deste mal. Não há como acabar com os conflitos em nosso meio, mas há esperança de transformar as visões sobre as soluções destes.

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